"Invejo - mas não sei se invejo - aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria.
Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida.
São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.
Que há-de alguém confessar que valha ou que sirva?
O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir.
O que confesso não tem importância, pois nada tem importância.
Faço paisagens com o que sinto.
Faço férias das sensações.
Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida.
Minha tia velha fazia paciências durante o infinito do serão.
Estas confissões de sentir são paciências minhas.
Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino.
Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia.
Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas
mãos espetadas e se passam de umas crianças para as outras.
Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete.
Depois viro a mão e a imagem fica diferente.
E recomeço.
Viver é fazer meia com uma intenção dos outros.
Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso.
Croché das coisas... Intervalo... Nada...
De resto, com que posso contar comigo?
Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo...
Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter...
Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a’ um filho vivo... Sim, croché..."
O Livro do Desassossego - Fernando Pessoa
Sem mais. Fernando apenas falando sobre aquilo que eu não teria dito de forma melhor.